A história de Guilherme
- Daniel Correia
- 6 de out. de 2023
- 4 min de leitura
Atualizado: 12 de mar. de 2024
Trinta e cinco anos, solteiro, pianista nas horas vagas, Guilherme morava com os pais e trabalhava em um escritório de uma indústria farmacêutica. Ganhava relativamente bem, comparado à média salarial do país. Não podia reclamar, era o que a família e os amigos diziam a ele nos momentos em que desabafava sobre o seu descontentamento. Não estava ruim, mas estava muito longe de estar bom. E a questão não era o salário; era com o que trabalhava. Havia um desencaixe, um impasse. De qualquer forma, tinha um bom emprego, fez uma boa faculdade, era o que comentavam. Se queixar era até um pecado, a mãe sempre lhe dizia.
Não se dava mal com as mulheres. Saía frequentemente e regularmente com elas, alternando o par de tempos em tempos. Os amigos sempre falavam que tinha dedo podre, atraindo sempre mulheres manipuladoras e ciumentas. Aquela fala se tornara repetitiva e enfadonha. Guilherme se irritava. Não tinha o porquê falarem sempre a mesma coisa. Não fazia sentido. Os amigos às vezes extrapolam na liberdade que têm.
A empresa onde trabalhava sempre promovia eventos e cursos de alta performance, produtividade e motivação. Participava de todos e ficava com o gás total, o que durava uma semana, às vezes nem isso. "Preciso repetir e programar minha mente para o sucesso e a felicidade". Sempre repetia tais palavras para si próprio quando não estava motivado ou satisfeito. "Sou um vencedor". "O sucesso virá com o tempo. É uma questão de hábito, esforço e repetição". "Eu posso, eu consigo".
Certo dia, nesses cursos sobre motivação e alta performance, ouviu o palestrante dizer: “foguete não tem marcha ré”. Uma voz mansa e provocadora, proveniente de alguém sentado aproximadamente duas fileiras atrás, retorquiu: “mas explode, né?!”. Aquilo foi uma explosão na mente do rapaz de 35 anos – sem contar o mal-estar e o zunzunzum coletivo que o comentário provocou. Sem saber explicar bem ao certo, era como se fosse uma centelha que caíra num tanque de combustível, um estopim que pegou fogo e explodiu uma bomba. Há tempos Guilherme lutava contra algo (sem saber ao certo o que era e por quê). Como tentasse se convencer, ao longo dos anos, com frases curtas, prontas, impactantes e rasas. No fundo, ele queria mergulhar e saltar de ponta num mar, mas era como se tentasse fazer isso numa poça d’água. Toda esta compreensão, este insight, veio em segundos. Algo mudou. Não teria como voltar atrás.
A partir de então houve angústia, ansiedade e até mesmo um pico de depressão. Apesar de já ter procurado e frequentado várias psicoterapias terapias, sabia e sentia que não era isso que procurava. Era algo diferente. Tinha que tomar um caminho que não trilhou outrora. Um mês e meio após a “bomba” estourar, depois do armagedon em sua mente, na sala de espera do dentista, o solteiro ouviu uma conversa:
- Já faço análise há cinco anos.
- Análise?
- É! Análise pessoal, psicanálise.
- E o que é isso?
- Resumindo a história, uma terapia que lida com o inconsciente. Diferente da psicologia. É o que está funcionando para mim. Já fui em outras psicoterapias e elas me ajudaram até num certo ponto. Eu precisava de algo mais profundo. Existem questões que precisam ser tratadas sem o foco de alterar o comportamento através de técnicas, coisa que a psicologia faz e que fui percebendo com o tempo, sabe?! Tem coisa que é apenas a ponta do iceberg, a ponta do fio de novelo de lã que está embolado. A gente não precisa ser adaptado e encaixado, precisamos ser escutados. Na psicanálise o que se busca é escutar o inconsciente, pois ele é quem governa a vida da gente, tá ligado?!
- Sei lá, mano. Isso parece bruxaria.
- É quase isso só que ao contrário. A psicanálise quebra muitos encantos nossos. Tem coisa que a gente fica imaginando, viajando e fantasiando. Só existe na mente da gente, mas faz um estrago danado.
- Pode crer!
- Boto fé!
No mesmo dia, Guilherme procurou por “psicanalista” no Google. Pegou o contato do primeiro que atendia na sua cidade. Marcou sua primeira sessão e não parou desde então. Isso faz cinco anos. Ele hoje possui quarenta. Casou com uma mulher oposta ao que eram as ex-namoradas. Do fruto deste casamento nasceu Sofia. Um ano. Linda e meiga. Agora o trabalho não é mais no escritório da indústria farmacêutica. É numa escola de música, na sala de aula das classes de piano. Alguns disseram que mudou para melhor, outros falaram que enlouqueceu por trocar de profissão. Porém, o pianista dizia e repetia: “tu precisa deitar no divã pra se escutar, meu irmão! Com o inconsciente não se brinca não! Pode até parecer bruxaria, mas minha vida se transformou e mudou com os dias. Na minha vida tenho descobertas novas melodias. Dela até nasceu a Sofia. Um novo canto, harmonia, uma nova sinfonia.”
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. FIM (na verdade a história não acaba por aqui pois a vida continuava e se alterava para o músico. Ou seja, não parava até o seu fim).

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